Por Rosangela Carvalho
Era escura e sem forma como o princípio da criação. Perambulou
entre vidas e fatos. Carregou fardos leves e pesados. Tropeçou em pedras e
edificou fortalezas. Acendeu sua luz e emprestou à lua, satélite de sua orbita.
Não olhou para trás, peregrinou sem desistir. Acorrentou seus medos e os jogou
no latão do quintal. Todos os dias jogava fora o que não mais servia para seu
crescimento. Houve época que dizimava dores. Falava demais, questionava demais,
enfurecia-se demais. Lutava com as ideias e não atravessava uma rua para
construir uma ponte. Forçava escrever mesmo sem a técnica exigida nos
parâmetros humanos. Abria cortinas e mais cortinas, entretanto poucas eram as
janelas e as salas. Gostava de escrever na cozinha sentindo o cheiro suave de
um bolo que sua mãe criava. Criar? Já no curso fundamental repetia para si
mesma a frase ouvida: Na natureza nada se cria nada se perde; tudo se
transforma. Era uma simples frase de um físico chamado Lavoisier. Que frase!
Ecoou por dentro muitos anos. Tinha gosto não de bolo, tinha que mastigar muito
mais para descobrir seu paladar. Transformamos nossas vidas a cada giro no
pensamento, seja rotativo ou translativo. Humano algum pode criar, mas o
importante é nunca parar. O mundo se transforma a cada minuto. As unidades de
medidas se agigantam, quando dentro de nós as grandezas ficam inversamente
proporcionais. Valorizamos consumos desenfreados, famas passageiras, flores sem
raízes, uniões sem gerações, vasos betumados, adorações inúteis. Tão pequenos
nos tornamos. Quanto mais humilde mais se entende as pessoas. Quanto menos
móveis menos bagagens para carregar. Quanto menos ídolos mais de nós mesmos. O
mundo se fatiou. Tem pedaços para todos os lados de o mundo e cada mundo se
adorou como se fez. Tribos e mais tribos sem união. Sem união sujeito e
predicado não se encontram. Faz-se intransitivo. De ligação e ficamos,
permanecemos, estamos autônomos. Eslide peregrina, ela carregava as cenas do
mundo, enxugava pratos para não deixar suas lágrimas saírem de seus olhos
sensíveis. Queria entender o mundo e as pessoas, sem nem mesmo se entender. Teve momentos históricos e vaidosos. Queria
ser escritora sem buscar ensinamentos. Acreditava que sem conhecer fórmulas mágicas
e alheias escreveria originais. Não faria como Eça, nem como Machado que
imitaram bem um Balzac. Cansou um pouco de tantos conselhos ouvir. Foi estudar.
Conheceu um pouquinho de outros mundos. Amava ficar escondida em seu mundinho,
em seu cantinho semiótico. Não sabia nem o que pretendia. Só desejava passar a
vida escrevendo. Até ficou debilitada em falar. Não importava; escrever
prevalecia. Qual motivo? Quem saberá! A mente de Eslide era incansável. A arte
de pensar era sua rotina, passava horas e horas analisando, pensando,
refletindo sobre tudo e todos. Não cessava de pensar. Atentava em detalhes. Certa
vez se deteve mais tempo recordando um casal almoçando e a cena parou,
silenciou, para que o homem ouvisse o bater de asas de um beija-flor na janela
do restaurante. Era de um filme? Amava a sensibilidade. Amava minimizar. Amava
as manhãs renovadoras. Cada dia uma nova luz. Um raiar de melhores pensamentos.
Lapidação da escuridão em luz. Areia e pérola.
Até que com o tempo escrever foi se diluindo. Esvaneceu. Da luz que
recebeu veio o pensar. Veio o encontro com o signo maravilhoso e seu criador Derrida:
desconstrução. A vaidade se desenrolou feito céu na terra e Eslide percebeu que
escrever não era mais importante. Não mais necessitava ser escritora.
Desconstruiu-se. A arte de pensar, o silêncio tornou-se mais precioso. A vaidade
terá infinitos livros desnecessários. Desnecessárias palavras. Cenas
desnecessárias. Raras leituras nos modificam. O mundo se encheu. O mundo se
sucateou. Os valores decaíram. Tudo em excesso. Tudo em excesso faz mal. Mal
que só termina com o bem. O que é mal e o que é o bem? Dicotomia inexistente
para quem se achou. Parâmetros. Cultura. Vigotsky sabia da influência de uma
cultura. Simbologia atrai. Pense em uma pomba. Significados. Quão maravilhoso é
perceber significados. O que sua mente faz com você ao pensar em uma pomba?
Podia ser qualquer coisa, mas pensei em uma pomba. Não foi proposital, foi
oportuno. Eslide teve um habito em São Paulo de visitar sebos. Foi que se
encontrou, pela primeira vez, com Patrick Suskind e seu livro A pomba. Que livro.
Um livro curto com ocêanica mensagem. O que a simbologia pode fazer com alguém.
Eslide teve um grito – brainstom - dentro de si. Tão grande foi o impacto que
escreveu um conto sobre o livro: Um livro era o título. Tinha que homenagear
este homem. Foi que Eslide confirmou seu pensar, pois percebeu o que seria um
escritor. Estava longe disto mesmo. Com a desconstrução, a implosão de si, a
metamorfose gerou uma energia muito mais além do que pensava. Passou mais a
observar, olhar a natureza, olhar o mundo, olhar as pessoas, buscava ações.
Buscava servir com outras ferramentas. O resultado era bem maior. Ainda
escrevia alguns textos para incentivar e ajudar algumas pessoas. Parou de usar
bengalas. Bengalas me fazem pensar em José Paulo Paes e seu poema À bengala:
Contigo me faço pastor de meu rebanho de meus próprios passos. Não é lindo?
Tenho que atravessar a rua, sorrir para as pessoas,
ouvi-las me silencia. Silêncio. O mundo se tornou tão barulhento. Tão
permissível. Tão tudo pode. Que tudo pode mudar. Mudar rimas. Mudar a cor dos
cabelos. Mudar o vírus. Mudar a face. Mudar o tom. Mudar as máscaras. Mudar
ilhas. Mudar a escrita. Mudar o mudar. E tudo vai continuar como está. Será?
Pensou na pomba? O que pensou? Leu A pomba? Daria um belíssimo curta. Curta a leitura.
Curta sua casa, seus objetos, curta seus sonhos realizados, curta suas buscas,
curta sua órbita, curta sua vida, porque curta ela é! Eslide teve uma vida bem
curta, mas deixou o melhor por aqui. Ela nasceu sem forma e sem luz como o
princípio do mundo; mas teve um dia em sua vida, que mergulhou nas águas e
quando voltou tudo realmente se desconstruiu, a vaidade desceu rio abaixo. Ela
encontrou seu Criador e Ele disse: Haja Luz! E a luz se fez! Eslide se iluminou,
virou estrela e até deixou um texto: Cada vez mais Jesus é a mais forte
presença em meu ser; como se fosse eu, um velho tronco morto florescendo sem
explicação. Só mesmo pelas mãos do Senhor poderia um tronco morto dar folhas,
flores e frutos; fora de sua época, fora de sua natureza, porque Ele é o Deus
do impossível, quando Ele quer um milagre mostrar, não importa se tem água,
raiz ou terra fértil, Ele, simples-mente, diz: Floresça tronco morto! E o
tronco renasce!